Paulistanos vão para a cozinha e criam desastres culinários na pandemia

Mais da metade dos paulistanos aumentaram expedições ao fogão, segundo Datafolha

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Ubatuba (SP)

De tão queimado, o bolo se camufla em meio a fotos de pneus de trator. Os bolinhos de chuva têm braços e pernas e apêndices enigmáticos, lembram alienígenas de filme de ficção científica. A pizza, redonda, chata e preta, parece um disco de vinil torto que só ele.

Os desastres culinários acima, entre outros maus-tratos à comida, fazem rir quem entra no perfil Chefs na Quarentena, sucesso no Instagram.

A exemplo de 52% dos paulistanos, como aponta pesquisa Datafolha, as seis amigas que administram a página precisaram cozinhar como nunca haviam feito antes. E as coisas não saíram como o esperado. Sem querer, saíram muito melhores.

"No começo, só postávamos foto e vídeos nossos", conta a fotógrafa Aline Inagaki, 43, uma das criadoras do fenômeno. Mas a massa, por assim dizer, se identificou com as agruras dos bolos solados, pudins espraiados, pastéis calcinados e comidas petrificadas em geral.

As "chefs" já conquistaram quase 300 mil seguidores, que alimentam o perfil com pequenas tragédias domésticas hilariantes.

De acordo com o levantamento do Datafolha, realizado na primeira semana do mês, 88% da população tem sido obrigada a bancar o chef na quarentena imposta pela pandemia da Covid-19. As expedições à cozinha aumentaram para 55% das mulheres e 47% dos homens.

O confinamento produz um conjunto de fatores que acabaram empurrando a classe média para as panelas: o home office, a presença da família toda em casa, o medo de adquirir comida de restaurantes e, em alguns casos, a dispensa da empregada doméstica.

A queda na renda, apontada por 46% dos entrevistados, faz da comida caseira a única opção alimentar sensata.

Com tantos calouros cozinhando, fracassos gastronômicos são, para usar um clichê destes tempos, o novo normal.

O publicitário Pitxo Falconi, 58, precisou de um martelo para partir sua torta de peras ao vinho. "Ficou linda", conta com uma ponta de orgulho. "Mas impossível de comer."

Pitxo diz que já tinha alguma intimidade com o fogão. Cozinhava aos fins de semana. Peixes, carnes, macarrão. Na quarentena, foi além. "Nunca havia feito doces mais elaborados, de confeitaria." Fez. E precisou jogar fora.

Com alguma perseverança, e para o bem de suas famílias, os "neochefs" logram domar o ofício culinário numa jornada e a superação.

"Perdi o medo da panela de pressão", diz, confiante, a designer gráfica Denise Aires, 37, que mora em Pinheiros, zona oeste da capital paulista.

Sem emprego, Denise viu-se obrigada a fazer cada vez mais comida para o filho Tom, de 1 ano e crescendo.

"Um dia, eu cismei que ele precisava comer feijão", conta. A panela de pressão era um obstáculo a transpor. "Pedi ajuda para a minha avó. Pedi para o marido vigiar a panela. Dei uns gritos quando ela começou a apitar, mas foi só isso", relembra. "Hoje até tiro a pressão com a panela embaixo da torneira aberta."

Enquanto Denise estreou na panela de pressão aos 37, o assessor de investimentos Fábio Parada esperou até os 50 anos para assar o primeiro bolo. Massa de cenoura com cobertura de brigadeiro, outro hit da quarentena.

Sua filha Giovanna, 15, ficou ao seu lado e impediu que ele queimasse o motor do liquidificador. "Eu ia bater a farinha junto com os líquidos quando ela gritou: 'Para, animal!' É um tratamento carinhoso nosso."

Fábio, morador da Barra Funda, também na zona oeste, se diz um "executor de receitas" que vê na TV e na internet. Os grandes professores dos cozinheiros de distanciamento social são Rita Lobo, do site Panelinha, youtubers e ex-participantes do programa MasterChef Brasil.

Aline, do Chefs na Quarentena, também cita Rita como musa inspiradora. E outros sites de culinária. E livros de receita. E a observação atenta do próprio marido, que antes da pandemia era o cozinheiro oficial da casa, no Morumbi (zona sul de São Paulo).

A fotógrafa precisou aprender a cozinhar --atividade que nunca a interessara-- de afogadilho. Na quarentena, desapareceram os casamentos, os eventos e os trabalhos. Seu marido, em contrapartida, ficou assoberbado: trabalha com provedores de internet, e a demanda cresceu.

O jeito, para Aline, foi se enfurnar na cozinha. Sobraram as claras de uma massa à carbonara --o molho é à base de gemas--, e ela achou que deveria fazer suspiros. O resultado ficou meio triste, meio engraçado, totalmente feio.

A persistente fotógrafa diz que pegou gosto por cozinhar e melhorou muito. "Já sei até flambar o estrogonofe."

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